Após trinta anos de observação de aves no Paraná,
encontrar aqui no litoral uma espécie que nunca viu antes tem se tornado um
acontecimento bastante raro. Quando acontece, tende a ser um registro que vale
a pena a ser divulgado, além de me deixar em estado de jubilo.
Nas minhas visitas à cidade de Guaraqueçaba nunca
deixo de ir ao trapiche da marina, pois no seu corrimão costumam pousar até três
espécies de trinta-réis e com alguma sorte pode se ver dali também o
savacu-de-coroa (Nyctanassa violacea),
vulgo Tiazinha. Há três dias (6 de setembro), quando às 16 horas estava
chegando naquele local, escutei um barulho tão ruim que só podia vir de gente
da pior espécie. No entanto, quando vi o local exato donde surgiu, uma mancha
de capim-praturá (Spartina sp.) ao
lado esquerdo do trapiche, conclui que então tinha de ser um gnomo. Que engano!
Bem a minha frente estava uma saracura nunca vista antes! Estava tão perto (a
uns quinze metros) que sem binóculo consegui ver todos os seus detalhes. Tinha
tamanho do socozinho (Butorides striata)
e o bico longo era avermelhado de ponto escuro. Os flancos eram barrados de
branco em fundo marrom-escuro e o traseiro era tão branco e conspícuo quanto no
frango-d’água-comum. Continuei olhando, para memorizar todos os detalhes, pois
imaginava que a miragem se dissipasse logo em seguida para nunca mais retornar.
Todavia, mesmo quando baixei a minha mochila para tirar dela o meu fiel e
infalível consultor Deodato (Souza 2002), a ave permaneceu exatamente onde
estava. Deodato, que já viu tudo que voa neste país, pouco se emocionou e me
informou que se tratava da saracura-matraca (Rallus longirostris), espécie que ocorre ao longo da costa
brasileira até o limite sul dos manguezais, o seu hábitat exclusivo.
Naquele momento a ave novamente emitiu aquele som
escandaloso, para logo em seguido sair em disparato pelo capim, correndo atrás
de um segundo exemplar cuja presença não tinha percebido até então.
Vocês podem imaginar a minha louca alegria! E como
acontece quando estamos alegres, procuramos alguém com quem compartilhar. Olhei
a minha volta em busca de gente, gatos ou cachorros para agradar. Então percebi
que do terraço da lanchonete ao lado três jovens estavam me observando com
visível surpresa. Foi até eles e perguntei se tinham percebido ou escutado algo
de estranho acontecendo lá no capim. Eles disseram que não e um deles se
levantou, separando-se temporariamente da sua cerveja, para andar os dois
passos até a margem oposta da rua para ver. Felizmente, as saracuras ainda
estavam ali, inclusive continuavam naquela corrida. O rapaz contou que é
pescador (“inclusive aquela canoa ali é minha”) e que já conhecia aquela
saracura dos seus passeios diários pelos manguezais. Ele me informou que a
espécie é bastante arisca e que nunca a havia visto antes naquele local. Na suposição
dele se tratava de um casal, em que o macho estava tão excitado e focalizado na
perseguição da fêmea que por um instante se esqueceu da sua natureza desconfiada.
Então tinha de me despedir do pescador e das
saracuras, para não perder o ônibus das cinco horas. Duas horas depois, ao chegar
em casa, corri para os meus livros, para verificar o que diziam a respeito da
presença desta espécie no Paraná. No “Livro Vermelho”, Straube et al. (2004) informaram ter
conhecimento de apenas dois registros confiáveis para o Paraná: um do município
de Paranaguá e outro do município de Matinhos, num local dentro da APA de
Guaratuba. A espécie também é mencionada no plano de manejo da Estação
Ecológica de Guaraguaçú, também situada no município de Matinhos.
Hoje fiz uma busca no Internet e encontrei registros
paranaenses adicionais de duas localidades, todos os registros com fotos e
nomes dos observadores na Wikiaves:
- em Antonina: 26 de abril de 2013, um exemplar observado
por três pessoas;
- em Guaratuba: 8 de setembro de 2007, 15 de abril de
2009, 17 de julho de 2010, 5 de junho de 2011 e 17 de dezembro de 2012,
exemplares observados por seis pessoas diferentes.
Assim, ao que parece o registro do trapiche é o
primeiro para a espécie em todo vasto território do município de Guaraqueçaba.
Considerando a grande quantidade de manguezais naquela região e a sua boa
preservação, a saracura-matraca talvez não esteja tão rara ali quanto essa
ausência de registros sugere. Seria uma tarefa interessante alguém fazer um
levantamento da espécie, percorrendo toda região, para nesse silencio paradisíaco
poder escutar essa voz infernal de longe.
Deixe-me passar algumas informações seletas sobre a
espécie tiradas da obra de Perrins (1990). A saracura-matraca é ameaçada pela
perda de hábitat (destruição dos manguezais) e também pela caça. Já que
nidifica entre a grama da beira-mar pode acontecer que perde todos os ovos
durante uma maré de sizígia. Mas os filhotes, quando já nascidos, conseguem se
salvar, pois são excelentes nadadores. A espécie come principalmente
caranguejos e outros crustáceos, suplementado com sementes e tubérculos. Tem o
interessante costume de responder aos trovoados da tempestade com um coral de
chamados vocais. Será que isto pode ser chamada de chamado?
Tenho
mais alguma coisa para contar. Ontem (8 de setembro) caminhei o trecho do km 50
a km 66 da rodovia não asfaltada para Guaraqueçaba (PR-405). Havia sol e um
ventinho soprava: tempo delicioso. Nos primeiros dez quilômetros da caminhada
pouco aconteceu, mas depois ficou bem interessante. No km 62 havia um grande
número de aves circulando em corrente de ar ascendente: urubus-de-cabeça-preta,
alguns dezenas de andorinhões-de-sobre-cinzento (Chaetura cinereiventris) e quatro gaviões-tesoura (Elanoides
forficatus). Entre os gaviões parecia estar um casal, pois havia
vocalizações fortes, perseguições acrobáticas e lindos voos sincrônicos. Tratou-se
da minha primeira observação do gavião-tesoura na nova estação.
No trecho entre km 64 e km 65 a minha caminhada foi
alegrada pelo canto de quatro sabiás-una (Turdus flavipes), os indivíduos
separados por distancias de uns 150 metros e aparentemente cada um tentando
superar o outro em virtuosidade. Além deste pedestre, todos os outros ouvintes naquela
floresta devem ter curtido a jam session
impressionante.
No km 65,7, onde a rodovia cruza com o rio
Guaraqueçaba, estavam na copa de uma árvore duas fêmeas e um macho do
saí-andorinha (Tersina viridis), também se tratando da minha primeira observação
na nova estação. Mas o momento mais espetacular do meu passeio ainda estava por
vir.
No km 65,8, cem metros antes do começo da estrada lateral
para Batuva, vi um passarinho com muito branco, pousado no topo de uma árvore
isolada na pastagem. Puxei o binóculo e a minha coração bateu forte, pois nunca
antes tinha visto uma noivinha (Xolmis)
no litoral Além disso, esta espécie me parecia um pouco diferente daqueles que já
conheço do primeiro planalto. Foi possível admirar a ave demoradamente e
consultar Deodato. Aproximei-me um pouco mais, na esperança da ave levantar voo
para me mostrar o padrão de cores da asa aberta. Quando isto finalmente aconteceu,
com a ave voando para outra árvore isolada na pastagem, já era 17h15min e dez
minutos depois passou o meu ônibus. Ao chegar em casa consultei os meus outros
livros e também as excelentes fotografias no DVD de Minns et al. (2009). Não havia mais dúvida: tratou-se da noivinha-branca
(X. velatus), que no Paraná era
originalmente apenas conhecido dos campos cerrados no nordeste (Scherer-Neto & Straube 1995), mas que hoje é bem
conhecido tanto do Segundo quanto do Terceiro planalto paranaense (há numerosos
registros na Wikiaves). Mas na Wikiaves há apenas um registro da espécie para o
Primeiro planalto (7 de fevereiro de 2012, em Balsa Nova) e nenhum para a Serra
do Mar, nem para o litoral paranaense. Tratando-se de uma espécie migratória
(Sick 1985), é provável que o exemplar que vi ontem estava de passagem.
Todas essas observações mostram que este período do
ano é sensacional para a observação de aves. Levantam a sua bunda e peguem a
estrada, pois cada dia pode trazer alguma surpresa do tipo relatado aqui.
André August Remi de Meijer
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