Gilberto de Mello Kujawski
O sol deste radioso 7 de Setembro de 2011 iluminou algo diferente sob
o céu da pátria: a marcha contra a corrupção, em Brasília, ofuscou o desfile
oficial da Independência.
Cerca de 25 mil pessoas, segundo a Polícia Militar, sempre vigilante,
caminharam em protesto contra o tsunami de escândalos que ameaça por a
pique a política brasileira. Exibindo faixas, fantasias, gritando palavras de
ordem, a multidão bradou maciçamente contra a corrupção dos políticos,
indignada com o congresso do PT em defesa da base aliada, que atacou a
imprensa pela denúncia continuada das malfeitorias dos deputados e senadores
que acabam de absolver a senadora Jaqueline Roriz. A manifestação de repulsa não poupou o presidente do Senado, José Sarney.
Sem vaias, disciplinada, a marcha impediu a intrusão dos partidos, como o PSOL, que levava bandeiras e adereços, e cortou a palavra do senador
Álvaro Dias que ensaiou discurso. Exigiram a aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa, e não dispensaram um toque de ironia exibindo inscrição numa faixa, dizendo “Kadafi, não importa o seu passado, no Brasil você pode ser de-
putado”. Numerosas faixas com frases contundentes e bem humoradas: “País
rico é país sem corrupção”, “Fim do voto secreto”, “Contra Sarney e sua gangue”, “Menos ratos e mais ratoeiras”, “Jack horroriza” (alusão a Jaqueline
Roriz) e outras mais. O rosto mefistofélico do ex-ministro José Dirceu não poderia ser esquecido.
Informa um jornal que a rede social Facebook foi a principal ferramenta
de convocação do público presente na marcha. Sim, o facebook foi e é uma
“ferramenta” e só; quer dizer um instrumento, um meio e nada mais. Aqui vai
uma lição decisiva para os entusiastas cegos da linguagem virtual. Esta tem
limites. O facebook, a Internet são instrumentos de informação e mobilização
em massa. Mas não bastam. A mobilização real, em campo, a multidão marchando pelas ruas e praças da cidade e do país constituem um passo à frente sobre a convocação virtual. E foi isso o que a marcha contra a corrupção acrescentou à mera convocação virtual. A ferramenta não substitui a obra feita com ela, o virtual não se confunde com o real e os fins não podem
ser substituídos pelos meios.
E por que a marcha real se tornou indispensável? Porque a democracia
é um sistema político no qual a “representação” é tudo. A representação da
maioria pelas minorias funciona como uma delegação – os senhores congressistas existem para representar o povo na sua totalidade. Mas tem mais.
A palavra “representação” em política tem outro sentido, além da simples delegação. Sentido cênico e teatral. O Parlamento digno deste nome ,
com oradores falando, alguns com brilho excepcional, respondendo a apartes,
colocando-se em cena, como no teatro, constitui um espetáculo fascinante, o
próprio espetáculo da democracia acontecendo.
De algum tempo para cá, o parlamento no mundo inteiro perdeu o brilho e a vivacidade de sua performance tradicional. Os políticos desaprenderam de
falar, muitos são péssimos oradores, parecem tartamudos quando fazem uso da
voz. Talvez por vergonha e sentimento de culpa.
Ora, o que vimos em Brasília, naquele vibrante 7 de Setembro, foi a po-
pulação em cena, tomando para si as praças e as avenidas da capital federal, sem nenhuma delegação oficial, mas mesmo assim re-pre-sen-tando a maioria
do povo brasileiro, indignado com o escândalo da corrupção política crescente
e a céu aberto, os políticos traindo vergonhosamente seus mandatos e mais vergonhosamente ainda, incompetentes para julgar e punir seus pares.
A função de representar a maioria passou diretamente para o eleitores,
já que os eleitos não sabem e não querem cumprir seu papel. Não se trata de
nenhum ensaio de “democracia direta”, e sim do cumprimento daquela lei não escrita segundo a qual o sistema de poder não tolera o vácuo.
Ouçamos o que escreve um mestre sobre o significado da representação
cênica em política:
“A representação potencia a dimensão projetiva de toda a sociedade, a faz essencialmente futurista e portanto lhe impossibilita ficar reduzida ao fun-
cionamento de suas propulsões tradicionais” (Julián Marías, “A estrutura social”).
Caras Pintadas, avante!
Nenhum comentário:
Postar um comentário