{...} Gabriel correu a cortina do futuro e espiou. E viu sobre a crosta da terra uma certa poeira movediça. Mas, ansioso de detalhes, Gabriel microscopou e distinguiu uma dolorosa caravana de chimpanzés pelados, em atropelada marcha para o desconhecido. Miserável rebanho! Uns grandes, outros pequenos; estes louros, aqueles negríssimos --nada que recordasse a perfeição somática dos outros viventes, tão iguaizinhos dentro do tipo de cada espécie. Que feia variedade! Ao lado do Apolo, o torto, o capenga, o cambaio, o corcovado, o corcunda, o raquítico, o trôpego, o careteante, o zanaga, o zarolho, o careca, o manco, o cego, o tonto, o surdo, o espingolado, o nanico... Caricaturas móveis, com os mais grotescos disparates nas feições, era impossível apanhar-lhes de pronto o tipo-padrão. E Gabriel evocou mentalmente a linda coisa que é um desfile de abelhas ou pingüins, no qual não há um só indivíduo que destoe do padrão comum. Da manada humana subia um rumor confuso. Gabriel desencerrou os ouvidos e pôde distinguir sons para ele inéditos: tosse, espirros, escarradelas, fungos, borborigmos, ronqueira asmática, gemidos nevrálgicos, ralhos, palavrões de insulto, blasfêmias, gargalhadas, guinchos de inveja, rilhar de dentes, bufos de cólera, gritos histéricos...
Depois observou que à frente das multidões caminhavam seres de escol, semideuses lantejoulantes, vestidos fantasiosamente, pingentados de cristaizinhos embutidos em engastes metálicos, com penas de aves na cabeça, cordões e fitas, crachás e miçangas...
- Quem são?
- Os chefes, os magnatas, os reis: os condutores de povos. Conduzem-nos... não sabem para onde.
E viu, entremeio à multidão, homens armados, tangendo o triste rebanho a golpes de espada ou vergalho. E viu uns homens de toga negra que liam papéis e davam sentenças, fazendo pendurar de forcas miseráveis criaturas, e a outras cortar a cabeça, e a outras lançar em ergástulos para o apodrecimento em vida. E viu homens a cavalo, carnavalescamente vestidos, empenachados de plumas, que arregimentavam as massas, armavam-nas e atiravam-nas umas contra as outras. E viu que depois de tremenda carnificina um grupo abandonava o campo em desordem, e outro, atolado em sangue e em carne gemebunda, cantava o triunfo num delírio orgíaco, ao som de músicas marciais. E viu que os homens de penacho organizadores das chacinas eram tidos em elevadíssima conta. Todos os aplaudiam, delirantes, e os carregavam em charolas de apoteose. E viu que a multidão caminhava sempre inquieta e em guarda, porque o irmão roubava o irmão, e o filho matava o pai, e o amigo enganava o amigo, e todos se maldiziam e se caluniavam, e se detestavam e jamais se compreendiam... Horrorizado, Gabriel cerrou a cortina do futuro e disse ao Criador:
Só clicando abaixo saberão;
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u395351.shtml
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